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      Feliz de Tia Inah Sandoval por Fábio Caramru - Fábio Caramuru

Feliz, de Tia Inah Sandoval, por Fábio Caramuru, gravado em 1999, em São Paulo, no Teatro Cultura Artística, em piano Steinway, modelo D/Concerto. Parte do CD Especiarias do piano paulista – 25 obras de Inah Sandoval e Camargo Guarnieri.

Sobre Inah Machado Sandoval e o CD Especiarias do piano paulista

Paulo Ramos Machado – Prof. de História da Arte

Inah Machado Sandoval nasceu no dia 27 de maio de 1906. Portanto, neste ano da graça de 1995 ela completará 89 anos. Mas, estes muitos anos de vida não constituem o principal fio condutor de uma crítica à sua história e à sua arte. Há coisas além do espaço e do tempo que nos importam mais, quando se fala ou escreve sobre Inah Machado Sandoval ou simplesmente – e carinhosamente – Tia Inah. Carinhosamente porque não seria possível a alguém – da família ou não –dizer seu nome sem um tom de suavidade na voz.

“Tia” ficou sendo para nós, que a conhecemos, mais do que um grande parentesco: é uma palavra alegre vinda do coração. Tia Inah é uma compositora. Dito assim crê que é pouco. Uma compositora pode se destacar pela excelência das construções técnicas, pelo requinte contrapontístico dos jogos melódicos, pela ousadia no rompimento das regras tradicionais (ou clássicas) de composição. Porém, independentemente de um plano acadêmico apurado, pode-se conceber um outro nível de criação menos rigoroso, menos formal, menos intelectual, porém não menos expressivo e, quem sabe, por isso mesmo, mais possível de penetrar profundamente em nossa alma. Tia Inah faz isso com suas composições. Faz música sem pensar no que é permitido ou proibido pelos tratados de Harmonia.

Ela começou a compor ainda muito jovem. A primeira mestra foi sua mãe, Elvira Lacaz Machado, que no início deste século se destacou como uma das mais competentes professoras de piano da provinciana, e talvez muito mais encantadora, cidade de São Paulo. Casou-se com Floro Sandoval e foi morar na cidade de Franca. Teve quatro filhos e continuou mantendo uma particular forma de entender a vida em que o elemento essencial era a amizade dos seus semelhantes; a sinceridade no trato quotidiano com as pessoas do seu mundo; a crença na beleza da música que foi seu alimento espiritual desde aqueles tempos da juventude até hoje.

Tia Inah nunca parou de compor. Não conheço em detalhes todos os momentos de sua vida. Não importa. Mas, nesta síntese que procuro fazer agora, posso dizer que Tia Inah faz parte, com suas composições, de uma história da música brasileira, uma história muito especial, aquela dos compositores desejosos de dizerem, com música, aquilo que é a essência primeira da alma brasileira. Ela lembra Ernesto Nazareth ou Alexandre Levi. Em algumas composições transparece a sua vontade de homenagear os ídolos do seu onírico universo musical: Albeniz, Chopin, Debussy… Seus tangos brasileiros, canções, músicas espanholas e principalmente valsa brasileiras são expressões de seus momentos de devaneio lírico: e sempre, sempre querendo ser simples, direta e mensageira de uma forma de arte despretensiosa, em algumas passagens até ingênua, mas, indiscutivelmente, autêntica.

Um outro gênero que Tia Inah cultivou foi o das músicas infantis. São pequenas peças nas qual o adjetivo infantil possua um especial significado. São peças chamadas infantis, não porque sejam fáceis de serem tocadas, mas porque foram pensadas numa linguagem que permaneceu em estado de pureza na alma de Tia Inah. Ela que, mesmo sem saber, seguindo o conselho do pintor Matisse, sempre viu o mundo, a vida e a arte com olhos de criança. Este CD, além de ser um registro histórico, é também uma homenagem a uma compositora cujos méritos artísticos e humanos se inscrevem entre as melhores coisas já feitas pela música de nossa terra.

Tia Inah Machado Sandoval, pianista Fábio Caramuru lança obras de tia Inah

Obras de Tia Inah e Camargo Guarnieri / Projeto gráfico de Beth Bento

O Piano bem temperado de Fábio Caramuru
Terezinha Tagé

Jornal A Tribuna, “Caderno Galeria”F3, 19 de novembro de 2000. Santos/SP

As contribuições para o resgate de nossa música do ponto de vista histórico e cultural não são muito comuns. Tanto no campo do que se convencionou chamar de composições eruditas quanto no que se considera como popular no senso comum, continuam sendo raras as oportunidades de conhecimento e fruição de sua beleza. Felizmente, artistas de rara sensibilidade como o pianista Fábio Caramuru apresentam seu trabalho para nos consolar e enriquecer.

CD Especiarias do piano paulista, de Fábio Caramuru

Quem quiser confirmar estas afirmações basta ouvir as peças que ele interpreta no CD intitulado “Especiarias do Piano Paulista”. Trata-se de uma seleção de peças de dois nomes representativos do jeito paulista de ser brasileiro: Morzart Camargo Guarnieri e Inah Machado Sandoval ( ou “tia Inah”). São compositores diferentes em estilo, porém complementares na sua condição de criadores de um universo particular em nosso país.

Nas palavras de Fábio Caramuru “A idéia de realizar esses registros sonoro surgiu de uma antiga vontade de homenagear dois contemporâneos muito queridos … Apesar de haver um grande contraste entre as duas concepções musicais – Tia Inah uma compositora intuitiva, feminina, essencial, e Camargo Guarnieri, complexo, viril e de grande sofisticação contrapontística – ambos têm em comum o fato de serem paulistas, contemporâneos e traduzirem com igual competência em domínios distintos, aspectos da alma musical de São Paulo”.

CD Especiarias do piano paulista, de Fábio Caramuru, obras

Esta consciência de estar guardando na memória cultural uma arte voltada para nosso autodescobrimento (ou auto-achamento como dizem os portugueses) como seres pertencentes a um conjunto de sentidos locais que nos integram em parâmetros mundializados, pontos para iluminar o planeta, faz desse artista, um embaixador de nossa música a partir de seus projetos e de seu consequente sucesso. Como bom arquiteto, formação que ele também possui, Fábio planeja cada passo de suas interpretações construindo castelos de sons e harmonias em seu instrumento encantando: o piano.

O caminho percorrido por este intérprete brasileiro sempre foi pautado pela elegância, competência e simplicidade de alma, componentes de difícil integração entre os artistas que chegaram a um nível tão elevado de reconhecimento.

CD Especiarias do piano paulista, de Fábio Caramuru, Caderno 2, Estado de S. Paulo

Além de inúmeros prêmios recebidos, como por exemplo o “Concurso Nacional Camargo Guarnieri”, entre outros, obteve em 1980 bolsa do governo francês para aprimoramento em Paris com Magda Tagliaferro. Em 1990 assumiu a coordenação artística dos projetos da Fundação Magda Tagliaferro e em 1991 foi contemplado com o “Grande Prêmio da Crítica” da APCA, na área da música. Em 1997 lançou o CD “Tom Jobim Piano Solo”, dedicado ao compositor carioca, com arranjos próprios. Esse mesmo tema foi objeto de sua Dissertação de Mestrado em musicologia defendida na ECA/USP, sob a orientação do Professor Almicar Zani. Essa vida dedicada à música em todos os seus tons já levou Fábio Caramuru a recitais e conferências na Alemanha, França, Estados Unidos, sempre divulgando a música brasileira, inserindo-se em contextos da cultura mundializada.

CD Especiarias do piano paulista, de Fábio Caramuru, Ficha técnica

Esse aspecto relativo à nossa produção musical está altamente representado no CD que reúne os dois criadores da arte paulista com essas “especiarias”, segundo o título, que permitem ouvir um piano bem temperado. As composições de Inah Sandoval (nascida em 1906), que carinhosamente ficou conhecida como “Tia Inah”, trazem a marca de um mundo brejeiro, romântico, dos saraus paulistanos, das ruas movimentadas, dos quintais antigos onde as crianças brincavam, e dos namoros nos jardins dos casarões. Uma forma de beleza brasileira que só estes ritmos e sons conseguem registrar para a história dos sentimentos e do imaginário que trazemos em nós. Essa riqueza nos alimenta e fortalece em tempos de apagamento e diluição de nossos valores. São gestos de resistência cultural. A leitura de Fábio contribui para essa causa. Ele recria os ritmos das valsas e chorinhos e declara “… procurei interpretar suas composições com aquela delicadeza e muito carinho que existem na pessoa e nas obras dessa excepcional compositora.”

O outro artista homenageado neste CD é Mozart Camargo Guarnieri (1907-1993). Foi um pesquisador muito importante de nossos ritmos durante toda a sua vida, desde a convivência com seu mestre Mário de Andrade, quanto muito jovem, passando por momentos decisivos na História da Música Brasileira. As peças selecionadas nesse CD demonstram a preocupação do ilustre compositor paulista em criar uma produção musical voltada para nossas raízes e símbolos de origem indígena, na tradição da alma cabocla e na estética originada nos ritmos africanos. Sua arte era plena de emoção “nacional e não nacionalista” conforme suas próprias palavras.

CD Especiarias do piano paulista, de Fábio Caramuru, resenha, Estado de S. Paulo

No conjunto de composições selecionadas entre estas especiarias paulistas, ainda encontramos peças onde o piano se faz acompanhar por outros instrumentos e intérpretes como a percussionista Chica Brother, o violinista Edson José Alves, a flauta de José Ananias, clarinete de Daniel Cornejo, o acordeão de Sérgio Bizetti, que também assina os arranjos e a produção, além de um grupo técnico de excelência, sempre dirigido pelo próprio Fábio Caramuru.

Enquanto houver iniciativas desse porte nossa cultura estará preservada para integrar às riquezas da vida humana no universo.