Quem me conhece na intimidade sabe o quanto a perda precoce da minha mãe afetou a minha vida. Eu tinha pouco menos de 5 anos de idade quando ela partiu, em 1961. Ultimamente, andava sonhando muitas vezes com o apartamento onde morávamos na época, no Jardim Paulista. Todas as minhas memórias mais fortes sempre habitaram aquele espaço. Em sonhos recentes, tenho reencontrado todos os detalhes, a planta dos ambientes, os objetos, as cenas vividas quando eu era criança, ao lado dela e de meu pai.
Tomei uma decisão e, finalmente, em setembro, fui ao antigo prédio e consegui visitar o apartamento, que, para minha surpresa, estava vago. Tive muita sorte, pois o zelador estava na entrada e, após uma breve conversa, fui autorizado a entrar. A emoção que senti foi muito intensa. Muitas das cenas de décadas atrás voltaram claras e vivas, com cheiros, sons diversos, e até pude tocar novamente objetos como torneiras, fechaduras, elevadores e portas, que ainda estão exatamente como eram (mal pude acreditar). O impacto dessa visita foi tão grande, que pude ouvir na minha mente até o timbre suave da voz da minha mãe, sentir seu doce perfume e o calor de seus abraços.
Minhã mãe se foi tão cedo Eu apenas uma criança Ficou assim um vazio Cheio de ausência e saudade Já adulto, onde quer que eu vá As memórias viram presença Fecho os olhos e a reencontro Em cenas de alento e afeto Saudade da minha mãe De tê-la sempre por perto
Cena 1 No apartamento da Avenida Nove de Julho, em São Paulo, estou na cama dos meus pais, no meio dos dois, debaixo do lençol, chutando as cobertas, rindo e fazendo bagunça.
Cena 2 Na casa da minha tia Olgaides, na Rua Cravinhos, minha mãe separa um ovo para levar ao apartamento. Eu quero pegar o ovo de qualquer jeito, mas ela diz que não. Insisto até conseguir. Assim que pego o ovo, ele escapa e vai ao chão. Ela fica brava e dá um tapa em minha mão.
Cena 3 É época de São João. Estou no Jardim da Infância no Colégio Santa Margarida. Minha mãe vem trazer a roupa de caipira, para a festinha da escola, e me troca em uma salinha (provavelmente em junho de 1961).
Cena 4 Estamos eu e meus pais em uma avião Constellation manobrando de noite, no aeroporto. Olho pela janela e vejo aquele monte de luzinhas na pista e fico imaginando como é que o avião passa por cima delas sem quebrá-las… (viagem ao Nordeste, julho de 1959).
Cena 5 Estamos em uma casa na Avenida Nove de julho, sentados em um sofá, minha mãe conversando com uma mulher, há um gato ou gatos por perto. Vejo um detalhe do rabo em um vão do sofá e penso se tratar de um outro ser independente de seu dono. Um rabo com vida própria! 😆
Cena 6 Estamos, eu e meus pais, viajando de DKW, um carro vermelho de capota branca – modelo de 1960, em uma estrada (provavelmente para Serra Negra ou Poços de Caldas) e minha mãe canta uma música que faz referência a um gavião. Que música seria essa?
Cena 7 Estamos andando de mãos dadas na Rua Cravinhos, indo à venda do Seu Valentim, na esquina com a Alameda Casa Branca. Minha mãe compra para mim um chocolate comprido da Nestlé, com sabor de mel.
Cena 8 Estou com meus pais no carro DKW, chove muito forte e eu no banco de trás, observando a água sem fim batendo no vidro e me impedindo de ver as coisas do lado de fora (1960).
Cena 9 Estou sentado no colo da minha mãe, no banco do nosso piano amarelo Karl Peiter, ela me ensina alguma musiquinha simples, tocada apenas com o dedo indicador.
Cena 10 Estamos eu, minha prima Joyce e minha mãe dirigindo o DKW na Avenida Nove de Julho, naquele trecho em que ela cruza a Av. São Gabriel na direção sul. Ela entra com o carro na contramão, no ponto em que as pistas se dividem. A prima Joyce fica muito assutada e grita, desesperada, avisando que estamos na contramão (1960).
Cena 11 Um grande grupo de pessoas da família está na Pizzaria Paulino, na Rua Pamplona. Minha mãe bebe água tônica, peço para provar, acho amargo e faço uma careta!
Cena 12 Estou brincando com uns bonequinhos de plástico, de personagens da Disney, na pia do banheiro. Minha mãe me vigia, enquanto descansa no quarto em frente, no apartamento da Avenida Nove de Julho.